segunda-feira, 29 de março de 2010

Do blogue do Celso Sisto

Reproduzo aqui o texto escrito por nosso associado - o escritor, contador de histórias e ilustrador Celso Sisto - por ocasião de sua participação na mesa-redonda ano passado no I Seminário Por um Espaço Especial para a Literatura na Escola coordenado pela AEILIJ/RS. Celso integrou a mesa Literatura Infantil e Juvenil - O essencial é invisível aos olhos, junto à Annete Baldi (editora), Anna Claudia Ramos (escritora) e Beloni Baggio (diretora de escola). 

Com a autorização do autor reproduzimos sua fala abaixo. O presente texto encontra-se publicado originalmente no blogue do autor, aqui.

Att,
Hermes Bernardi Jr.
ccordenador regional AEILIJ/RS


OLHOS BUSCADORES DE ESSÊNCIAS, MEMÓRIAS PERFUMADAS PARA SEMPRE
Um dos significados da palavra essência é perfume!
É também “concentrado”
É também “extrato”, “sumo”
A essência principal num perfume é o cheiro predominante, por isso se pode falar em perfumes amadeirados, florais, etc.
E a essência da literatura é o jogo de palavras? O lúdico pode saltar aos olhos... Mas a brincadeira pela brincadeira às vezes não fabrica uma essência... Então, textos apenas “brincantes” podem carecer de essência! Essa talvez seja a minha primeira crítica! Será que não há hoje, no mercado editorial, um excesso de livros querendo apenas brincar com o leitor infantil, impregná-lo de uma musiquinha que tem ritmo gostoso, que não sai da cabeça, mas que pode ser puro modismo! Feita pra tocar na rádio!
A essência precisa ser buscada com cuidado. Se fosse num processo químico, a essência ia aparecer quando todo o composto passasse por um processo de separação. No processo de separação das partes, às vezes se obtém uma quantidade tão pequena de essência! E esses perfumes são os que acabam logo, são os que evaporam rápido. São os textos em que o pseudo-literário é apenas um mau fixador. Quer dizer, para a literatura funciona de modo contrário: primeiro a gente lê, sente, prova, brinca, repete, sonha, imagina, completa, entende, desentende, amplia, etc., tudo misturado. Depois a gente tenta separar para compreender o processo formativo daquele texto que nos afetou tanto. A crítica age assim. O professor age assim. O leitor comum não age assim! Mas o professor pode ajudar a seus alunos, leitores seduzidos, a perceberem as maravilhas e os ingredientes que compõem o texto saboroso e perfumoso! Não para desconstruí-lo e despedaçá-lo, mas para ampliar ainda mais o seu sabor, para espalhar ainda mais o seu perfume!
Palavras só ganham perfume, só se aromatizam quando conjugadas de forma que gerem um conjunto harmônico, saboroso, gostoso de ouvir, de ler, de dizer. O sabor da palavra é o perfume da palavra. E a palavra preparada com sabor é capaz de ser perfume que se espalha na nossa pele, porque palavra saborosa propicia arrepio, faz a gente sentir a emoção correndo feito riozinho dentro da gente. Então, essência na literatura é tudo isso: é esse ficar em silêncio, talvez, ouvindo o marulhar das águas da emoção, atravessando os afluentes, lá dentro do nosso corpo.
A essência é o que distingue as coisas. Do contrário, todo e qualquer texto seria a mesma coisa! É a essência que individualiza cada obra, cada texto, cada autor. E cada texto exige de quem o apresenta, uma estratégia diferente. Por isso, quem escolhe como instrumento de trabalho a literatura, escolhe a permanente renovação, a permanente estratégia de sedução, escolhe um perfume que combine com cada ocasião e com cada roupa que se vai vestir. Mas, pelo amor de Deus, não estou falando de textos para cada data cívica do calendário! Isso seria o mesmo que os dias transversais, para não usar a palavra tema!!!! Ou trema!
Não importa quanto tempo se gaste para se chegar a essência de um bom texto. Aliás, só se chega a essência de um bom texto quando ele vem morar dentro da gente, quando a gente é capaz de se pegar dizendo em voz alta, pedaços inteiros daquele texto. Quando a gente nem percebe que reproduz quase que as mesmas palavras escritas no papel, porque agora elas ficaram inscritas no corpo. Palavras tatuadas são aquelas que adornam a nossa memória, como ficaram em mim os versos de Bandeira: “Vou-me embora pra Pasárgada, pois lá sou amigo do rei”. E cada texto literário, fica sendo então uma Pasárgada, e eu quero chegar lá para ficar sendo amigo daquele autor-rei!
Uma boa história perfuma seu leitor, seu ouvinte. Pasárgada tem cheiro de terra nova. Livro bom também. Essa terra fresca fica morando na memória e em todos os sentidos. Tem bom fixador, como de um perfume francês. E engraçado, quando se fala em odor de um perfume, se fala em alma e em notas...
O papel do professor mediador de leitura é exatamente ajudar seu leitor a atingir, sem pressa, a alma do texto. Ir chamando para fora do texto as “notas” que compõem o perfume, a essência. Há tanta beleza num texto para ser destacada: Quem pode negar que “Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior, nem menor, com velhos e velhas que velhavam, homens e mulheres que esperavam, e meninos e meninas que nasciam e cresciam, todos com juízo suficiente, menos uma meninazinha. A que por enquanto...” não é uma perfumada construção de Guimarães Rosa para o texto “Fita verde no cabelo”? que ele ainda chama de nova-velha história? Que nasceu lá naquela versão dos camponeses franceses, quando o lobo ao encontrar com a menina no caminho, levando pão e leite, pergunta-lhe se ela vai pelo caminho das agulhas ou pelo caminho dos alfinetes? Mas os caminhos escolhidos pelo texto às vezes fazem doer algumas coisas dentro da gente! Portanto, fica aqui a minha segunda crítica, abaixo a ditadura do final feliz e da resolução sempre positiva: é preciso trazer também para o leitor frascos de perfumes que à princípio não são tão agradáveis. Um perfume provocante nem sempre é aquele mais gostoso e fácil de aspirar. Portanto, não é preciso ficar poupando os narizes de nossos alunos! Eles logo descobrem uma maneira de lidar com os perfumes fortes! Os extratos! São fortes, são duradouros! São inesquecíveis!
Mas a maneira de perceber a alma de um texto pode mudar, pode se chegar a essa alma do texto por muitos caminhos... O mais importante é que esse caminho seja uma viagem agradável, se ainda se está no momento da conquista. Para conquistar a namorada também se escolhe um perfume bom, esperando, no mínimo que ela vá notar e gostar. E que perfume bom o de Clarice, quando ao final do seu Felicidade Clandestina, a narradora diz “Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante”. Polvilhar o caminho de encontro do leitor com a alma do texto, de forma instigante, convidativa, é papel do professor. Muitas vezes, para se chegar a um texto, se pode puxar da memória, outros textos. Ir preparando um texto para que ele aflore com toda a sua força e potência é exercício árduo. Para se chegar à “Fita verde no cabelo”, há que se ter passado por “ exemplo, por “Era uma vez uma pequena aldeã, a menina mais bonita que poderia haver. Sua mãe era louca por ela e a avó, mais ainda. Esta boa senhora mandou fazer para a menina um pequeno capuz vermelho. Ele lhe assentava tão bem que por toda parte aonde ia a chamavam Chapeuzinho vermelho.”, como nos diz Charles Perrault.
E como ganha novo perfume a mesma história recontada por Chico Buarque; “Era a Chapeuzinho Amarelo. Amarelada de medo. Tinha medo de tudo aquela Chapeuzinho. Já não ria. Em festa, não aparecia. Não subia escada nem descia. Não estava resfriada mas tossia. Ouvia conto de fada e estremecia. Não brincava mais de nada, nem de amarelinha”. E como se modifica ainda mais esse perfume, quando em “Chapeuzinho Vermelho de Raiva”, Mário Prata nos diz: “Vovó, sem querer ser chata, o seu nariz hoje está tão esquisito, tão vermelho. – É a poluição, Chapeuzinho, desde que começou a industrialização do bosque que é um Deus nos acuda, passo o dia inteirinho respirando esse ar poluído do bosque! Chegar a banhar-se do extrato, da essência, não pode ser obrigação. Usar um perfume que não nos atrai, que nos provoca esgares de nojo, produz dor de cabeça. Um texto no qual não se chegou a atingir a alma, provoca, lógico, repulsa. Mas a repulsa não poderia ser evitada? Principalmente se ler não for apenas uma tarefa mecânica. Não somos construtores de robôs, que precisem chegar a responder aos comandos sempre da mesma maneira! O sumo, o concentrado de um texto não está em tirar dele lições de morais ou lições gramaticais, está em bebê-lo também para que ele se misture com o sangue que corre nas nossas veias. Sangue misturado com palavras é sangue bom, sangue azul, porque nos enobrece! Texto que se quer beber é texto que dá água na boca! Mas textos diferentes exigem caminhos diferentes: o perfume da poesia aparece de um jeito, o da crônica de outro... Me lembrei da bela crônica que Paulo Mendes Campos escreveu quando sua filha completou 15 anos, fazendo uma belíssima comparação com Alice no País das Maravilhas. “Agora, que chegaste à idade avançada de quinze anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no País das Maravilhas. Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti. Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade. A realidade, Maria, é louca...”
O que é essencial na literatura infantil e juvenil só é perceptível aos olhos que desenvolveram lentes adequadas para lê-los! Ler a superfície e as outras camadas. De novo, o perfume, que é um todo, revela suas partes, como o texto revela suas camadas. E o que se faz com um texto literário? Tudo! Se cria a partir dele. Inclusive nossa própria imagem. Eu posso me ver através de todos os textos que me afetaram, os que eu li mais de uma vez, os que eu quis contar inúmeras vezes, porque as minhas escolhas me revelam. Mas é preciso ter olhos pra ver! Destampar os vidros de perfumes que um texto literário contem e aplicá-lo em cada leitor,dá trabalho. É tarefa para professor-mediador-perfumista. Mas não se esqueça, um texto que não é literário, não permite esses usos múltiplos, porque em geral, só serve para uma coisa: afastar os nossos narizes sedentos de bons odores, do jardim das palavras. Palavras sem perfumes são palavras fósseis, palavras-ossos, que jazem no cemitério dos livros. Estou mais do que convencido que mesmo o texto literário, de qualidade mais do que comprovada, exige a presença de um bom perfumista!

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